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Consertando o Direito de Reparar



Publicado no Estadão


O direito de reparar (do inglês, Right to repair, #R2R) é um movimento que vem ganhando força nos Estados Unidos da América e na Europa, sendo liderado por consumidores e pequenos empreendedores para garantir o direito de escolher quem vai consertar os seus equipamentos, máquinas ou dispositivos.


Várias indústrias impõem barreiras técnicas ou legais a esta opção, impedindo que tais consertos sejam feitos pelo próprio consumidor ou por uma pessoa de sua escolha. Na prática, isso cria um monopólio da assistência técnica, em que o fabricante determina, por meio de software, hardware ou simplesmente cláusula de Propriedade Intelectual, quem tem o direito de receber instruções, orientação ou peças de reposição para realizar o conserto.

Bloqueios de software, ferramentas de gerenciamento de direitos digitais (Digital Rights Management - DRM) ou medidas de proteção tecnológica (Technological Protection Measures - TPM) são tecnologias de controle de acesso implementadas por fabricantes de equipamentos originais (OEM).


Enquanto os fabricantes argumentam que essas medidas são necessárias para proteger o hardware proprietário e as tecnologias protegidas por direitos autorais, os defensores dos reparos argumentam que essas táticas bloqueiam as Organizações de Serviços Independentes (ISOS) e os consumidores de realizar reparos básicos.


A John Deere, gigante da fabricação de equipamentos agrícolas, sempre impediu os agricultores de consertar seus próprios tratores, valendo-se dos mais variados argumentos, desde a insinuação de que os fazendeiros não teriam condições técnicas de fazer o trabalho até o de que mexer nos sensores dos tratores mais modernos poderia gerar riscos cibernéticos e colocar em xeque a cadeia de suprimento alimentar norte-americana. De acordo com Cory Doctorow (1), tais argumentos são vazios, visto que a Deere tem uma das piores seguranças cibernéticas de qualquer setor da indústria norte-americana.


A Apple, por exemplo, não permite que lojas independentes consertem botões domésticos em iPhones e a Nikon parou de vender peças de reposição para lojas de câmeras locais, forçando muitas lojas a fecharem suas portas. (2)


Por outro lado, muitas empresas – a própria John Deere, inclusive – têm em seu histórico a incorporação de ideias para modificações ou melhorias de técnicas, sistemas e equipamentos exatamente a partir das intervenções dos próprios consumidores, aprimorando a funcionalidade de seus produtos e serviços, tornando-os ainda mais lucrativos.


Neste cenário de puxa e empurra, no início de julho, a administração de Joe Biden anunciou uma medida para garantir aos consumidores e pequenos empreendedores o direito de reparar seus equipamentos. O conteúdo da ordem executiva emitida pela administração Biden ainda será detalhado, mas o marco do anúncio já é importante; é a primeira vez que o Executivo norte-americano toma posição expressa e anuncia ações para garantia do direito de reparar.


O direito de reparar não é um conceito ou paradigma novo ou voltado ao mundo digital. Na verdade, esse direito decorre da análise de práticas anticompetitivas de serviços técnicos e de reparos impostas pelos grandes fabricantes. Em maio, o jogo ganhou uma peça relevante preparada pela Federal Trade Commission (3). Um relatório nominado “Nixing the Fix: An FTC Report to Congress on Repair Restrictions”, no qual a FCT afirma que “há poucas evidências para apoiar as justificativas dos fabricantes em termos de restrições de reparo”.


Os fabricantes, por seu lado, argumentam que o trabalho de reparo que fazem é superior ao de lojas terceirizadas, por possuírem acesso a informações, manuais, peças de reposição e ferramentas adequadas, e, indo além, afirmam que precisam proteger suas marcas. O relatório aponta que a indústria automotiva já vem caminhando ao encontro do direito de reparar, uma vez que a Auto Care Association observou que 70-75% dos consumidores fazem uso de oficinas independentes devido, principalmente, a questões como confiança, conveniência e preço.


A discussão sobre o direito de reparar pode assumir ainda uma dimensão mais ampla, transnacional, que advém dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos. Os princípios, propostos por John Gerard Ruggie (4) e endossados pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, norteiam a alocação de responsabilidade de Estados e empresas em relação às iniciativas de proteção de direitos humanos e tem por base três pilares: proteger, respeitar e remediar (no sentido de remédios, de prover reparação efetiva a quem sofrer violações). Assim, resumidamente, os Estados têm o dever de proteger, as empresas devem respeitar e todos devem comprometer-se em garantir que aqueles que são prejudicados sejam reparados.


Esses princípios vêm provocando discussões em torno do tema Empresas e Direitos Humanos, antes associados somente aos Estados. Agora, as empresas também precisam e devem assumir sua parte de responsabilidade, o que ganha corpo com a consolidação do movimento ESG (Environmental, Social and Governance). As empresas não mais somente atuam em seus territórios de origem, mas expandiram geograficamente e atuam através da Internet sob diferentes sistemas legislativos e normativos, sejam jurídicos, técnicos ou tecnológicos.


Por isso, a devida diligência (due diligence) está no epicentro das discussões. Cabe também às empresas exercerem suas partes de maneira ativa e autônoma, por responsabilidade e transparência, empreendendo esforços para evitar violações de direitos de qualquer pessoa, consumidor ou usuário de Internet, cuidando de prevenir ou mitigar os impactos negativos de suas condutas, como por exemplo, práticas anticompetitivas, violações de privacidade, uso indevido de dados pessoais ou biométricos, entre outras situações.


De há muito um comando legal puro e simples não é palavra jurídica imutável, principalmente quando envolve uma questão de direitos humanos, cuja eficácia já está bem mais sedimentada na relação entre o indivíduo e o Estado, mas ainda em construção na relação horizontal entre particulares, aí incluída a relação entre a indústria e o consumidor. A proteção da propriedade intelectual não é apenas legítima, como é fundamental para que a inovação seja ela própria sustentável. Mas considerada essa lente tripla de quadro regulatório nacional, condições técnicas do contexto histórico e panorama internacional de proteção de garantias fundamentais, não se podem impedir evoluções paradigmáticas. O olhar das empresas precisa estar atento às transformações que nascem de fora para dentro (dos consumidores para o negócio) e não somente às que lhes interessam, de dentro para fora (do negócio para os consumidores).


Questões como a garantia de que consumidores e pequenos empreendedores possam reparar seus próprios equipamentos ou escolher livremente seu serviço de assistência técnica chamam atenção para a necessidade de assegurar que o cumprimento de leis nacionais e contratos nos países em que as empresas fazem negócios, principalmente as empresas com atuação transnacional, seja combinado com a adoção de medidas voluntárias voltadas à promoção de boas práticas, preferencialmente induzidas e inspiradas por standards internacionais como os Princípios Ruggie. A intenção é prevenir que a força dessa atuação ampla, que tem ainda mais impacto se exercida sobre uma indústria de base tecnológica – não se torne tóxica para os consumidores.


Afinal, negócios já não são apenas negócios.


Cláudio Lucena, Professor e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Estadual da Paraíba. Pesquisador da Fundação para a Ciência e a Tecnologia do Governo Português, lotado no Research Center for the Future of Law, Católica Global School of Law, Universidade Católica Portuguesa e Diretor do Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD)

Cinthia Obladen de Almendra Freitas, professora Titular e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da PUCPR. Diretora Acadêmica do Instituto Nacional de Proteção de Dados (INPD)





(4) RUGGIE, J. G. Quando negócios não são apenas negócios. São Paulo: Planeta sustentável, 2014.



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